O IMPÉRIO DO INSETO – G. K. CHESTERTON

(Fonte: O que há de errado com o mundo)

Um culto amigo conservador mostrou-se certa vez bastante aflito quando, num momento de descontração, chamei Edward Burke de ateu. Nem preciso dizer que a afirmação carecia de precisão biográfica; foi proposital. A consciente teoria cósmica de Burke certamente não fazia dele um ateu, embora ele, como Robespierre, não tivesse lá uma grande e ardente fé em Deus. Não obstante, a afirmação referia-se a uma verdade que vale a pena repetir aqui. O que quero dizer é que, na disputa em torno da Revolução Francesa, Burke foi de fato favorável tanto à atitude como ao modo ateu de argumentação, ao passo que Robespierre defendeu a posição teísta. A Revolução apelou à idéia de uma justiça eterna e abstrata, superior a todo costume ou conveniência locais. Se existem os mandamentos de Deus, então devem existir os direitos do homem. Foi nesse ponto que Burke realizou o seu grande desvio; ele não atacou a doutrina de Robespierre armando-se da antiga doutrina medieval do jus divinum (que, como a doutrina de Robespierre, era teísta); ele a atacou armando-se do moderno argumento do relativismo científico, em suma, com o argumento da evolução. Ele sugeriu que em todo lugar a humanidade era moldada por ou ajustada ao seu meio e às suas instituições; em verdade, ele sugeriu que, na prática, cada povo tinha não apenas o tirano que merecia, mas o tirano que deveria ter. “Eu não sei nada sobre os direitos dos homens”, disse ele, “mas sei algo sobre os direitos dos ingleses”. Eis aí o verdadeiro ateu. Seu argumento é o de que nos foi dada uma proteção por meio da contingência e do crescimento naturais; logo, por que haveríamos de pensar mais além e em todo o mundo, como se fôssemos imagens de Deus? Nós nascemos sob a proteção da Câmara dos Lordes, como pássaros sob o abrigo de folhas. Nós vivemos sob uma monarquia, como os negros vivem sob um sol tropical. Não é culpa deles se são escravos, e não é nossa se somos esnobes. Desse modo, muito antes de Darwin ter desferido seu grande golpe contra a democracia, o essencial do argumento darwiniano já havia sido instado contra a Revolução Francesa. O homem, disse Burke, deve de fato se adaptar a tudo, como um animal; ele não deve alterar tudo, como um anjo. O último brado fraco dos piedosos, atraentes e quase artificiais otimismo e deísmo do século XVIII veio da voz de Sterne, quando disse: “Deus ajusta o vento ao cordeiro tosquiado”. E Burke, o firme evolucionista, respondeu: “Não. Deus ajusta o cordeiro tosquiado ao vento”. É o cordeiro que tem de se adaptar, isto é, ou ele morre, ou se torna um estranho tipo de cordeiro que gosta de permanecer numa corrente de ar.

O instinto popular subconsciente contra o darwinismo não foi uma mera ofensa à grotesca idéia de visitar o avô em uma prisão no Regent’s Park. Os homens gostam de beber, pregar peças e de muitas outras coisas grotescas; eles não se importam muito em se passar por brutos, e não se importariam muito se bestas tivessem sido criadas a partir de seus antepassados. O verdadeiro instinto era muito mais profundo e muito mais valioso. Ele consistia no seguinte: logo que se começa a pensar no homem como uma coisa mutável e alterável, é sempre fácil ao forte e astuto submetê-lo a moldes novos com toda sorte de propósito artificial. O instinto popular vê em tais evoluções a possibilidade de criar costas arqueadas e corcundas para carregar suas cargas ou membros retorcidos para desempenhar suas tarefas. Ele tem um palpite bem fundado de que tudo quanto seja feito depressa e sistematicamente será feito geralmente por uma classe bem-sucedida e quase unicamente em benefício dela. O povo consegue, portanto, vislumbrar híbridos inumanos e experimentos meio-humanos muito semelhantes aos d’A Ilha do Doutor Moreau, do sr. Wells. Imaginam que o homem rico poderá criar uma tribo de anões para serem seus jóqueis e uma tribo de gigantes para serem seus porteiros; que os cavalariços poderão nascer de pernas arqueadas e os alfaiates de pernas cruzadas; que os perfumistas poderão ter narizes compridos e grandes e uma postura humilhante, como a de cães farejadores; e que degustadores profissionais de vinho poderão já nascer com a horrível expressão de alguém que prova vinho estampada no rosto. Qualquer que seja a louca imagem sugerida, ela não se compara ao pânico da fantasia humana quando se supõe que a espécie fixa chamada “homem” poderia ser mudada. Se algum milionário quiser braços, brotarão dez braços num porteiro, como os de um polvo; se ele quiser pernas, um mensageiro correrá a atendê-lo com suas cem velozes pernas, como as de uma centopéia. No espelho distorcido da hipótese, isto é, do desconhecido, os homens podem ser vagamente essas formas malignas e monstruosas. O homem torna-se um olho ou um punhado de dedos, sem nada lhe restar, exceto uma narina e uma orelha. Eis o pesadelo com que nos ameaça a simples noção de adaptação. Eis um pesadelo que não está lá tão distante da realidade.

Dir-se-á que não é o evolucionista mais imoderado quem realmente solicita que nos tornemos inumanos de qualquer maneira, ou que imitemos outro animal. Desculpem-me, mas é exatamente o que desejam não apenas os evolucionistas mais imoderados como também alguns dos mais dóceis. Tem crescido bastante, nos últimos tempos, um importante culto que se assemelha à religião do futuro – isto é, a religião daquelas poucas pessoas pusilânimes que vivem no futuro. É característico de nossa época que ela tenha de procurar seu deus com um microscópio; e nossa época tem assinalado uma precisa adoração do inseto. Como todas as coisas que chamamos novas, naturalmente, ela não é de modo algum nova como idéia; é apenas nova como idolatria. Virgílio leva as abelhas a sério, mas duvido que ele cuidaria delas com o zelo com que escrevia sobre elas. O sábio rei mandou o preguiçoso observar a formiga, um serviço fascinante – para um preguiçoso. Mas surgiu em nossa época um tom bastante diferente. E mais de um grande homem, bem como inúmeros homens inteligentes, têm sugerido atualmente que deveríamos estudar o inseto porque somos inferiores a ele. Os antigos moralistas simplesmente tomaram as virtudes humanas e as distribuíram de um modo completamente ornamental e arbitrário entre os animais. A formiga era quase um símbolo heráldico da diligência, como o leão o da coragem, ou o pelicano o da caridade. Mas se os medievais tivessem se convencido de que um leão não era corajoso, teriam deixado de lado o leão e mantido a coragem; se o pelicano não fosse caridoso, eles diriam: “azar o dele”. Os antigos moralistas permitiam que a formiga reforçasse e simbolizasse a moralidade humana, mas jamais permitiriam que ela a frustrasse. Eles usavam a formiga para a diligência como a cotovia para a pontualidade; eles olhavam para os pássaros batendo suas asas e para os insetos rastejando em busca de uma simples lição. Nós, contudo, deparamo-nos com uma seita que não olha para os insetos de cima para baixo mas de baixo para cima, e que basicamente nos pede que façamos reverência e adoremos besouros, como faziam os antigos egípcios.

Maurice Maeterlinck é um homem de inconfundível inteligência, e o homem inteligente sempre traz consigo lentes ampliadoras. No terrível cristal de suas lentes, vimos as abelhas não como um pequeno enxame amarelo, mas antes como exércitos dourados e hierarquias de guerreiros e rainhas. A imaginação perscruta e rasteja perpetuamente pelas vias e panoramas dos tubos da ciência, e imaginam-se todas as frenéticas inversões de proporção: a lacraia avançando a passos largos pela reverberante planície como um elefante, ou o gafanhoto zunindo sobre nossos telhados como um imenso avião, enquanto salta de Hertfordshire para Surrey. Parece que entramos num sonho, em um templo de entomologia gigante, cuja arquitetura se baseia em algo mais selvagem do que os braços ou a coluna vertebral, no qual as colunas em forma de costelas têm a aparência de obscuras e monstruosas larvas semi-rastejantes, ou o dono a aparência de uma luminosa aranha horrivelmente pendente do vazio. Há uma obra moderna da engenharia que provoca algo similar a esse inominável medo dos exageros de um submundo. Trata-se da estranha arquitetura do metrô subterrâneo, comumente chamado de Twopenny Tube (“tubo de dois pennies”). Aqueles grossos arcos, sem qualquer barra ou pilar vertical, parecem ter sido construídos por minhocas gigantes que nunca souberam suspender suas cabeças. É o próprio palácio subterrâneo da Serpente, o espírito da forma e cor mutantes, que é inimigo do homem.

Mas não foi apenas por meio de tais estranhas inspirações estéticas que escritores como Maeterlinck nos influenciaram nesse campo; há também uma dimensão ética nesse assunto. O livro de Maeterlinck sobre as abelhas termina com uma confissão de admiração (ou, pode-se dizer, de inveja) de sua espiritualidade coletiva, do fato de elas viverem apenas em função de algo que ele chama de a “alma da colméia”. E essa admiração da moralidade comunitária dos insetos manifesta-se em muitos outros escritores modernos de origens diversas e sob diversos aspectos. Segundo a teoria do sr. Benjamin Kidd, vive-se apenas em função do futuro evolutivo de nossa raça e o grande interesse que alguns socialistas têm pelas formigas, que geralmente preferem às abelhas, deve-se – suponho – a não serem tão gloriosamente coloridas. Não menos importantes entre as centenas de evidências em favor dessa vaga insetolatria são as enxurradas de bajulações dirigidas pelos modernos àquela enérgica nação do Extremo Oriente, da qual foi dito que o “Patriotismo é a única religião”; ou, em outras palavras, que ela vive apenas em função da “alma da colméia”. Quando, ao longo de vários séxulos, a Cristandade se tornou fraca, mórbida ou cética, e a misteriosa Ásia começou a mover em nossa direção sombrias populações e a despejá-las no Oeste num trevoso movimento de massa, em tais caso tem sido muito comum comparar a invasão a uma praga de piolhos ou a incessantes exércitos de gafanhotos. Os exércitos orientais de fato se assemelhavam a insetos. Em sua ânsia cega e diligente por destruir, em seu perverso niilismo de cunho pessoal, em sua detestável indiferença em relação à vida individual e ao amor, em sua desprezível crença em simples números, em sua coragem pessimista e seu patriotismo ateu, os viajantes e invasores do Oriente de fato se assemelhavam a todas as coisas rastejantes da terra. Mas creio que os cristãos nunca chamaram um turco de gafanhoto, tomando-o como elogio. Hoje, pela primeira vez, nós adoramos o que tememos e observamos com adoração aquela enorme força que avança de modo vago e indeterminado desde a Ásia, vagamente discernível no meio de nuvens místicas de criaturas aladas pairando sobre terras destruídas, invadindo os céus como o trovão e manchando os céus como a chuva: eis Belzebu, o Senhor das Moscas.

Ao resistirmos a essa horrível teoria da “alma da colméia”, nós da Cristandade defendemos não só nós mesmos, mas toda a humanidade, defendemos a essencial e inconfundível idéia humana de que um homem bom e feliz é um fim em si mesmo, de que uma alma merece ser salva. Mais ainda, segundo aqueles que gostam de tais fantasias biológicas, é bem possível que se diga que resistamos como chefes e defensores de toda uma parte da natureza, príncipes da casa cujo conhecimento é a espinha dorsal, defendendo o leite da mãe particular e a perversidade dos gatos, a afeição do plácido cavalo, a solidão do leão. Mais concretamente, porém, convém argumentar que essa simples glorificação da sociedade, tal como ocorre com os insetos sociais, é transformação e dissolução de um dos contornos que foram particularmente os símbolos do homem. Na confusa nuvem de moscas e abelhas, a idéia da família humana está se tornando cada vez mais fraca, quase que a desaparecer. A colméia ficou maior que a casa, as abelhas estão destruindo seus captores. O que o gafanhoto abandonou, a lagarta comeu. E a pequena casa e o pequeno jardim de nosso amigo Jones estão num mau caminho.

 

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