O Sermão do Padre Mapple – Herman Melville

(Trecho de Moby Dick, de Herman Melville. Ed. Cosac Naify, 2008)

O padre Mapple levantou-se e, com a voz tranqüila de uma modesta autoridade, ordenou às pessoas espalhadas que se agregassem. “Prancha de estibordo, ali! Correr a bombordo! – E da prancha de bombordo, a estibordo! À meia-nau! À meia-nau!”

Ouviu-se entre os bancos um leve rumor de botas pesadas de marinheiros, e um ainda mais leve arrastar de sapatos femininos, e tudo retornou ao silêncio, e todos os olhares se fixaram no pregador.

Ele fez uma pequena pausa; depois se ajoelhou no púlpito, cruzou as suas grandes mãos morenas sobre o peito, levantou os olhos fechados e fez uma oração com tão profunda devoção que parecia estar ajoelhado e rezando no fundo do mar.

Assim terminando, com tom de voz solene e prolongado, como o dobre contínuo do sino de um navio navegando no meio de um nevoeiro – com o mesmo tom ele começou a entoar o seguinte hino, passando nas últimas estrofes à explosão de uma retumbante exultação e alegria:

As costelas e os terrores na baleia
Cobriram-me de uma escuridão lúgubre,
Enquanto as ondas iluminadas pelo Senhor
Arrastavam-me para o fundo do abismo.

Eu vi a boca aberta do inferno,
Com as suas dores e pesares infinitos;
Só quem sentiu pode saber –
Oh! Afundei-me no desespero!

Na minha angústia chamei pelo Senhor,
Que mal podia crer que fosse meu,
Ele prestou ouvido às minhas queixas,
E a baleia me pôs em liberdade.

Acudiu sem demora em meu socorro

Como se transportado por um golfinho radiante;
Brilhou na água como um raio
O rosto do meu Libertador terrível e divino.

No meu canto sempre vou recordar
Esta hora terrível e magnífica;
A glória é do meu Senhor,
Sua é a força, e é Sua a misericórdia.

Quase todos cantaram juntos este hino, que se elevou acima do estrondoso temporal. Uma pausa se seguiu; o pregador começou a folhear lentamente a Bíblia e por fim, ousando sua mão sobre a página certa, disse: “Bem-amados companheiros de bordo, vamos nos prender ao nó do último versículo do primeiro capítulo de Jonas – ‘Deparou, pois, o Senhor um grande peixe, para que tragasse a Jonas’.

“Companheiros de bordo, este livro que só tem quatro capítulos – quatro meadas – é uma das menores tramas da poderosa corda das Escrituras. E, no entanto, que profundidades da alma a linha-d’água de Jonas sonda! Quão prenhe é a lição que nos ensina o profeta! Como é nobre o cântico do interior do ventre da baleia! Como ondula, tão tempestuosamente solene! Sentimos a inundação lançar-se sobre nós; com ele tocamos algas do fundo das águas; as plantas marinhas e todo o limo do mar nos cercam! Mas qual é a lição que o livro de Jonas nos ensina? Companheiros de bordo, é uma lição de dois fios; uma lição para todos nós, pecadores, e uma lição para mim, como piloto do Deus vivo. Falando aos pecadores, é uma lição para todos nós, porque é uma história do
pecado, da insensibilidade, dos temores subitamente despertos, das punições imediatas, do arrependimento, das orações e, finalmente, da libertação e do júbilo de Jonas. Como sucede com todos os pecadores, o pecado desse filho de Amitai foi sua desobediência obstinada do mandamento de Deus – não importa qual ou como foi transmitido o mandamento – que Jonas achou difícil de cumprir. De resto, todas as coisas que Deus ordena são difíceis de cumprir – lembrem-se disso – e por isso é mais freqüente ouvi-Lo comandar do que tentar nos persuadir. E para obedecermos a Deus temos que desobedecer a nós mesmos; é nesta desobediência de nós mesmos que consiste a dificuldade de obedecer a Deus.

“Com este pecado da desobediência em si, Jonas ainda escarnece de Deus, tentando Dele fugir. Ele acha que um navio feito por homens pode levá-lo a regiões onde Deus não reina, mas apenas os Capitães deste mundo. Erra pelo cais de Jope, procurando um navio que vá para Társis. Talvez haja aí um significado até agora despercebido. Tudo indica que Társis não pode ter sido outra cidade senão a moderna Cádiz. Esta é a opinião dos homens cultos. E onde fica Cádiz, companheiros de bordo? Cádiz fica na Espanha. Era o lugar mais distante de Jope que Jonas podia alcançar naqueles tempos antigos, quando o Atlântico era um oceano quase desconhecido. Porque Jope, a moderna Jafa, companheiros de bordo, fica na costa da Síria, no extremo oriente do Mediterrâneo; e Társis, ou Cádiz, mais de duas mil milhas a oeste de lá, logo depois do estreito de Gibraltar. Bem vedes que Jonas, companheiros de bordo, procurava fugir de Deus pelo mundo. Que homem miserável! Oh! Que vergonhoso e digno de todo o desprezo! Com o chapéu amarrotado e olhos culpados, fugindo de seu Deus; andando a esmo entre as embarcações, como um vil ladrão, tentando atravessar os mares. Sua aparência é tão desarrumada e tão reprovável que, se naquela época existissem policiais, Jonas teria sido preso como suspeito antes de chegar ao convés. É evidente que é um fugitivo! Sem bagagem, nem uma caixa de chapéu, mala ou sacola de viagem – sem amigos para acompanhá-lo até o cais para dizer adeus. Por fim, depois de muita busca furtiva, encontra um navio para Társis recebendo os últimos itens de seu carregamento; e, quando sobe a bordo para falar com o Capitão no camarote, todos os marinheiros param
de içar as mercadorias para prestar atenção ao olhar maligno do forasteiro Jonas percebe, mas em vão procura conforto e confiança; em vão esboça um sorriso infeliz. Uma intuição muito forte assegura aos marinheiros que o homem não pode ser inocente. Em tom jocoso, mas falando sério, um sussurra ao outro – ‘Jack, ele roubou uma viúva’;  ou ‘Joe, marca esse cara; ele é bígamo’; ou, ‘Harry, meu filho, acho que ele é o adúltero que fugiu da prisão de Gomorra, ou talvez um dos assassinos desaparecidos de Sodoma’. Um outro corre para ler o cartaz que está pregado num pilar do cais onde o navio está ancorado, oferecendo quinhentas moedas de ouro pela prisão de um parricida, e descrevendo a pessoa. Ele lê, olha de Jonas e volta para o cartaz, enquanto todos os seus
companheiros de bordo então se juntam em volta de Jonas, prontos para agarrá-lo. Assustado, Jonas treme, e, por mais que finja ter coragem, só consegue parecer ainda mais covarde. Não quer se confessar suspeito; mas mesmo isso já é coisa muito suspeita. Faz o melhor que pode; e, quando os marinheiros percebem que aquele não é o homem procurado, deixamno passar, e ele vai para o camarote.

“‘Quem está aí?’, grita o Capitão, atarefado na escrivaninha, arrumando os papéis para a Alfândega. – ‘Quem está aí?’ Oh! Como uma pergunta tão simples pode perturbar tanto Jonas! Por um instante ele quase foge outra vez. Mas logo se reanima. ‘Procuro uma passagem neste navio para Társis; quando tenciona partir, senhor?’ Até então o atarefado Capitão ainda não tinha olhado para Jonas, embora o tivesse bem diante de si; mas, quando ouve aquela voz cavernosa, lança-lhe um olhar perscrutador. ‘Zarpamos com a próxima maré’, respondeu lentamente, sem tirar os olhos de Jonas. ‘Tão tarde, senhor?’ – ‘Cedo o bastante para um homem honesto ir como passageiro.’ Ah, Jonas, outra punhalada! Mas ele procura rapidamente despistar o Capitão. ‘Vou zarpar com o senhor’, – diz ele –, ‘A passagem, quanto custa? – Pago já!’ Pois está escrito, companheiros de bordo, como se fosse algo a não ser esquecido nessa história, ‘que ele pagou, pois, sua passagem’ antes de a embarcação partir. E, naquele contexto, isso é muito significativo.

“Ora, o Capitão de Jonas, companheiros de bordo, era um daqueles homens cujo discernimento detecta um crime onde houver, mas cuja cobiça o leva a denunciar apenas os que não têm dinheiro. Neste mundo, companheiros de bordo, o Pecado que pagar sua passagem pode viajar tranqüilamente, e sem passaporte; ao passo que a Virtude, se for pobre, é detida em todas as fronteiras. Por isso, o Capitão de Jonas se prepara para avaliar o peso da bolsa de Jonas, antes de julgá-lo abertamente. Cobra-lhe o triplo de uma passagem comum; e Jonas concorda. O Capitão sabe, então, que Jonas é um fugitivo; mas ao mesmo tempo resolve ajudar uma fuga que deixa atrás de si moedas de ouro. Mas, quando Jonas lhe apresenta a bolsa, suspeitas prudentes assolam o Capitão. Faz soar cada moeda, para ver se não há nenhuma falsa. Não é um falsário, murmura, inscrevendo Jonas no livro de bordo. ‘Mostre-me minha cabine, senhor’, diz Jonas, ‘estou cansado da viagem; preciso dormir.’ ‘Bem se vê’, diz o Capitão, ‘o quarto é ali.’ Jonas entra, quer trancar a porta, mas não tem nenhuma chave na fechadura. Ao ouvi-lo mexer ali, o Capitão ri baixinho para si mesmo e murmura algo sobre a porta dos condenados nunca poder ser trancada pelo lado de dentro. Vestido e empoeirado como está, Jonas se joga no leito e percebe que o teto da pequena cabine quase bate em sua testa. O ar é estagnado, e Jonas está ofegante. Então, naquele cubículo exíguo, abaixo do nível do mar, Jonas tem o pressentimento do sufoco de quando a baleia o aprisionará em suas entranhas mais estreitas.

“Uma lâmpada presa pelo eixo na parede balança um pouco no quarto de Jonas; e o navio, adernando para o cais com o peso do último carregamento, a lâmpada, chama e tudo o mais, embora com mínimos movimentos, ainda mantêm uma obliqüidade permanente em relação ao quarto; embora, na verdade, mantendo-se reta, a lâmpada só evidencie a inconstância dos planos entre os quais está suspensa. A lâmpada intimida e assusta Jonas; o fugitivo, bem-sucedido até aquele momento, deitado em seu leito, não encontra repouso para os seus olhos atormentados. Mas aquela contradição da lâmpada o amedronta cada vez mais. O chão, o teto e a parede estão errados. ‘Oh! É assim que minha consciência balança, pendurada sobre mim!’ – ele geme – ‘Bem acima de mim, ela queima verticalmente; mas as cabinas de minha alma estão todas tortas!’

“Assim como alguém que depois de uma noite bêbada de festa se apressa em ir para cama, ainda cambaleante, mas com a consciência aflita, como as arremetidas de um cavalo de corrida romano, quanto mais lhe fere o aço das esporas; assim como alguém que nesse estado miserável ainda vira e revira em sua angústia vertiginosa, pedindo a Deus para que o aniquile até que passe a crise; e enfim, em meio a esse torneio de tormentos que sente, ele é acometido de uma letargia profunda, a mesma que acomete um homem que se esvai em sangue, porque a consciência é a ferida, e não existe nada que a estanque; assim, depois de penoso debater-se no leito, o prodígio de tamanha desgraça arrasta Jonas para afogá-lo nas profundezas do sono.

“E agora a hora da maré chegou; o navio para Társis solta os seus cordames; e do cais deserto, sem um adeus, ele desliza, inteiro inclinado, para o mar. Aquele, meus amigos, é o primeiro navio de contrabandistas registrados que se conhece! O contrabando era Jonas. Mas o mar se revolta; ele não suportará o fardo perverso. Rebenta um temporal horrível, e o navio está prestes a afundar. Mas agora que o contramestre chama a todos para esvaziá-lo; que caixas, pacotes e frascos são jogados sobre a amurada; que o vento uiva, os homens gritam, e todas as tábuas trovejam com os passos dos marinheiros  obre a cabeça de Jonas; com toda essa turba enfurecida, Jonas dorme seu sono abominável. Não vê o céu negro e o mar em fúria, a madeira estalar não sente, e pouco escuta ou percebe o avanço distante da poderosa baleia, que desde já, de boca aberta, singra os mares em sua busca. Sim, companheiros de bordo, Jonas tinha descido para o costado do navio – para um leito na cabine, como contei, e dormia profundamente. Mas o mestre assustado vai a ele e grita em seu ouvido inerte, ‘O que significa isso, ó, dorminhoco! Levanta-te!’. Arrancado de sua letargia por esse grito horrível, Jonas põe-se de pé, e cambaleando até o convés agarra-se a um brandal para observar o mar. Mas naquele momento, como se fosse uma pantera saltando pela amurada, rebenta sobre ele o vagalhão. Ondas e mais ondas se atiram sobre o navio e, não encontrando escoamento ao rugirem de popa a proa, quase afogam os marinheiros ainda a bordo. E, quando a lua branca mostra seu rosto amedrontado por entre os sulcos profundos da escuridão acima, Jonas vê aterrorizado o gurupés se erguendo, apontando alto, para em seguida precipitar-se novamente em direção às profundezas atormentadas.

“Terrores e mais terrores dilaceram sua alma. Por todos os seus atos amedrontados, o fugitivo de Deus é agora mais do que reconhecido. Os marinheiros observam-no; suspeitam dele cada vez mais, e por fim, para terem uma prova da verdade, submetendo toda a questão aos Céus, tiram a sorte para saber por causa de quem esta tormenta tão poderosa foi lançada sobre eles. A sorte cai sobre Jonas; enfurecidos, começam então a assaltá-lo com perguntas. ‘Qual é tua ocupação? De onde vens? De qual país? De que povo?’ Mas observem, meus companheiros de bordo, o comportamento do pobre Jonas. Os marinheiros ansiosos apenas lhe perguntam quem é ele e de onde vem; no entanto, eles não recebem apenas uma resposta a tais perguntas, mas também a uma pergunta que não tinham feito; a resposta não solicitada é forçada pela mão pesada de Deus, que cai sobre ele.

“‘Sou um hebreu’, grita – e logo depois – ‘Temo a Deus, Senhor do Céu, criador do mar e da terra.’ Temes a Deus, ó, Jonas? Bem podias ter temido a Deus antes! Sem demora, faz uma confissão plena; apesar de os marinheiros estarem cada vez mais estarrecidos, mesmo assim se apiedam. Pois quando Jonas, ainda sem suplicar a misericórdia de Deus, conhecendo muito bem a obscuridade de sua deserção – pois bem, quando o desgraçado Jonas lhes pede que o agarrem e o atirem ao mar, porque sabe que por sua causa a tempestade caíra sobre eles; os marinheiros, com pena, se afastam dele e buscam um outro meio de salvar o navio. Mas tudo em vão; o vendaval revoltante uiva ainda mais alto; então, com uma mão erguida para invocar Deus, com a outra os marinheiros, não sem relutância, seguram Jonas.

“Vejam agora Jonas, erguido como uma âncora, ser jogado ao mar; quando instantaneamente uma calmaria untuosa vem do leste, e o mar fica imóvel, enquanto Jonas afunda levando consigo o vendaval, deixando a água serena atrás de si. Ele desce no coração rodopiante dessa comoção desgovernada e mal percebe que cai em direção à boca escancarada que o aguarda; e a baleia cerra os dentes de marfim, como inúmeros ferrolhos brancos, sobre sua prisão. Então Jonas orou ao Senhor de dentro da barriga do peixe. Mas observem sua oração e aprendam uma lição importante. Por mais que tenha pecado, Jonas não lamenta nem se lastima pedindo sua libertação. Ele sente que seu terrível castigo é justo. Deixa que Deus decida sobre sua libertação, contentando-se com isto, que apesar de toda a dor e angústia ele ainda eleva o pensamento a Seu templo sagrado. Eis aqui, companheiros de bordo, o genuíno e fiel arrependimento; sem clamor de perdão, mas grato pelo castigo. E como a conduta de Jonas agradou a Deus, vê-se por sua libertação do mar e da baleia. Companheiros de bordo, não ponho Jonas diante de vocês para que lhe copiem o pecado, mas sim como modelo de arrependimento. Não pequem; mas, se o fizerem, arrependam-se como Jonas.”

Enquanto proferia essas palavras, os uivos da clamorosa tempestade que desabava do lado de fora pareciam acrescentar mais força ao pregador, que, descrevendo a tempestade no mar de Jonas, parecia ele próprio atirado à tempestade. Seu peito arfava como se num maremoto; seus braços agitados pareciam a fúria dos elementos; e os trovões que saíam de sua fronte escura e a luz saltando de seus olhos faziam com que todos os seus simples ouvintes olhassem para ele com um temor súbito, que lhes era estranho.

Eis que então seu olhar se aliviou, enquanto ele silenciosamente virava as páginas do Livro outra vez; e, por fim, de pé, imóvel, de olhos fechados, por um momento, pareceu comungar com Deus e consigo.

Mas novamente se inclinou para a frente dirigindo-se às pessoas, baixou a cabeça, e com um aspecto da mais funda porém digna humildade proferiu estas palavras:

“Companheiros de bordo, Deus colocou apenas uma das mãos sobre vós; mas as duas pesam sobre mim. Ensinei-vos, com a luz enfumaçada que pode meu entendimento, a lição que Jonas ensina a todo pecador; portanto a vós, e ainda mais a mim, pois sou um pecador maior do que vós. Com que alegria eu desceria do alto deste mastro e me sentaria aí nas escotilhas onde vós estais sentados, ficaria escutando como vós ficais, enquanto um de vós recita para mim a terrível lição que Jonas me ensina, como um piloto do Deus vivo. Como sendo ungido piloto-profeta, ou orador das coisas verdadeiras, e escolhido do Senhor para fazer soar essas verdades indesejáveis nos ouvidos da vil Nínive, Jonas, temendo a hostilidade que suscitaria, fugiu de sua missão e tentou escapar a seu dever e a seu Deus embarcando em Jope. Mas Deus está em toda parte; a Társis ele jamais chegou. Como vimos, Deus veio até ele na baleia e o engoliu, tragando-o nos golfos da perdição, e arrastou-o por quedas rápidas ‘até o coração do mar’, onde os redemoinhos das profundezas o sugaram milhares de braças para baixo, e ‘as algas se enrolaram em sua cabeça’, e todo o mundo marinho de infortúnios transcorreu sobre ele. Mas mesmo então, além de qualquer sonda – ‘nas vísceras do inferno’ –, quando a baleia encalhou nos ossos do fundo do oceano, mesmo então, Deus escutou o arrependimento do profeta engolido quando ele gritou. Então Deus falou com o peixe; e da frieza tiritante e do negrume do mar a baleia subiu na direção do agradável e caloroso sol, e de todas as delícias do ar e da terra, e ‘vomitou Jonas na terra firme’; qaundo a palavra do Senhor veio pela segunda vez; e Jonas, alquebrado e abatido – seus
ouvidos, como duas conchas do mar ainda ressoando o inumerável murmúrio do oceano –, Jonas cumpriu as ordens do Todo-Poderoso. E qual era a ordem, companheiros de bordo? Pregar a Verdade diante da Falsidade! Isso mesmo!

“Esta, companheiros de bordo, esta é aquela outra lição; e ai do piloto do Deus vivo que a desdenha. Ai de quem o mundo distrai do dever do Evangelho! Ai de quem tenta verter azeite sobre as águas, quando Deus as fermenta em tempestade! Ai de quem tenta agradar em vez de consternar! Ai daquele para quem um nome bom significa mais do que a bondade! Ai de quem, neste mundo, não receia a desonra! Ai de quem não for verdadeiro, mesmo que a falsidade seja a salvação! Sim, ai de quem, como diz o grande Piloto Paulo, prega aos outros ao mesmo tempo em que também está perdido!”

Por uns instantes recolheu-se a uma reflexão; depois levantou o rosto novamente, mostrando uma profunda alegria nos olhos, e proclamou com muito entusiasmo: “Mas, oh! Companheiros! A estibordo de todo infortúnio é certo que existe uma alegria; e o ápice dessa alegria é tanto mais alto quanto mais profundo é o infortúnio. Não são mais altos os topes de mastro do que profundas as quilhas? A alegria – uma alegria elevada, elevadíssima, do coração – é para aqueles que opõem sua inexorável personalidade aos deuses e aos comodoros orgulhosos deste mundo. A alegria é para aquele cujos braços fortes o sustentam quando a nau deste mundo traiçoeiro e ignóbil lhe afunda sob os pés. A alegria é para aquele que não cede à mentira e que mata, queima e destrói o pecado, mesmo que tenha que procurá-lo sob as togas dos Senadores e Juízes. A alegria – a alegria suprema – é para aquele que não conhece outra lei ou senhor a não ser seu Deus, nem outra pátria que o céu. A alegria é para aquele a quem nem as ondas do mar nem as turbulências da multidão conseguem desviar da Quilha dos Tempos. E a alegria e a delícia eterna são para aquele que ao deitar-se pode dizer com seu último alento – Ó, Pai! – que conheço especialmente por Tua verga – mortal ou imortal, aqui eu morro. Esforcei-me para ser Teu, mais do que do mundo ou de mim próprio. Contudo, isso não é nada: deixo a eternidade só para Ti; pois o que é o homem, para viver tanto quanto seu Deus?”

Não disse mais nada, mas, fazendo lentamente uma bênção, cobriu seu rosto com as mãos e assim ficou, de joelhos, até que todos partiram, deixando-o sozinho no local.

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