A Vontade de Crer (Parte 1) – William James

(A Vontade de Crer, de William James. Editora: Loyola, 2001. Este livro é uma transcrição da conferência dirigida aos grêmios filosóficos da Universidade de Yale e Brown University, publicado em 1896)

No recentemente publicado Life, de Leslie Stephen, sobre seu irmão Fitz-James, há o relato de um incidente ocorrido numa escola que este último freqüentou quando menino. O professor, um certo Mr. Guest, costumava conversar com seus alunos nos seguintes termos: “Gurney, qual é a diferença entre justificação e santificação? – Stephen, prove a onipotência de Deus!” etc. Em meio ao nosso livre-pensar e à nossa indiferença “harvardianos”, somos inclinados a imaginar que aqui, nesta boa e velha universidade ortodoxa, as conversas continuam a ser um pouco dessa ordem; e, para mostrar a vocês que nós, em Harvard, não perdermos todo o interesse por esses temas vitais, trouxe comigo esta noite algo como um sermão sobre a justificação pela fé para ser lido – ou melhor, um ensaio sobre a justificação da fé, uma defesa do nosso direito a adotar uma atitude de crença em questões religiosas, mesmo que nosso intelecto meramente lógico talvez não tenha sido compelido a isso. A vontade de crer, por conseguinte, é o título deste trabalho.

Há muito tenho defendido diante de meus alunos a licitude da fé voluntariamente adotada; porém, assim que eles se tornam intensamente imbuídos do espírito lógico, têm como regra recusar-se a admitir que minha argumentação seja filosoficamente lícita, mesmo que, na verdade, tenham estado todo o tempo pessoalmente repletos, eles próprios, de uma outra fé. Eu, no entanto, mantenho-me sempre tão profundamente convencido de que minha posição está correta, que este convite me pareceu uma boa ocasião para tornar minhas afirmações mais claras. Talvez suas mentes estejam mais abertas do que aquelas com que tive de lidar até aqui. Serei tão pouco técnico quanto possível, embora seja necessário começar estabelecendo algumas distinções técnicas que nos ajudarão no final.

I

Vamos dar o nome de hipótese a qualquer coisa que possa ser proposta à nossa crença; e, assim como os eletricistas falam de fios vivos e mortos, falaremos das hipóteses como vivas ou mortas. Uma hipótese viva é a que aparece como uma possibilidade real para a pessoa a quem é proposta. Se eu lhes pedir para acreditar no Mandi, a idéia não criará nenhuma conexão elétrica com a natureza de vocês – ela se recusa a cintilar com qualquer credibilidade que seja. Como hipótese, é completamente morta. Para um árabe, porém (mesmo que ele não seja um dos seguidores de Mahdi), a hipótese está entre as possibilidades da mente: ela é viva. Mostra que o caráter vivo ou morto de uma hipótese não é uma propriedade intrínseca, mas está relacionado ao pensador individual. É medido pela disposição do indivíduo para agir. O máximo de vida em uma hipótese significa uma disposição irrevogável para agir. Na prática, isso representa crença; mas há alguma tendência de crença sempre que existe alguma disposição a agir.

Em seguida, vamos chamar de opção  a decisão entre duas hipóteses. As opções podem ser de vários tipos: 1) vivas ou mortas; 2) forçosas ou evitáveis; 3) prementes ou triviais; e, para nossos propósitos, podemos chamar uma opção de genuína quando ela é do tipo vivo, forçoso e premente.

  1. A opção viva é aquela em que ambas as hipóteses são vivas. Se lhes digo: “Sejam teosofistas ou sejam muçulmanos”, esta possivelmente é uma opção morta, porque é provável que, para vocês, nenhuma das duas hipóteses seja viva. Mas, se eu digo: “Sejam agnósticos ou sejam cristãos”, a situação será diferente: pela formação que vocês têm, cada uma dessas hipóteses tem algum apelo, mesmo que pequeno, à sua crença.
  2. Em seguida, se lhes digo: “Escolham entre sair com o guarda-chuva ou sem ele”, eu não lhes ofereço uma opção genuína, pois ela não é forçosa. Vocês podem evitá-la facilmente decidindo não sair. De maneira semelhante, se eu digo: “Amem-me ou odeiem-me”, “Chamem minha teoria verdadeira ou chamem-na de falsa”, sua opção é evitável. Vocês podem permanecer indiferentes a mim, sem me amar nem me odiar, e podem recusar-se a fazer qualquer julgamento a respeito de minha teoria. Porém, se digo: “Aceitem esta verdade ou passem sem ela”, eu lhes apresento uma opção forçosa, pois não há nenhuma posição fora das alternativas. Todo dilema baseado numa disjunção completa, sem nenhuma possibilidade de não escolher, é uma opção desse tipo forçoso.
  3. Por fim, se eu fosse o doutor Nansen e lhes propusesse participar de minha expedição ao Pólo Norte, sua opção seria premente, pois essa provavelmente seria a única oportunidade semelhante, e sua escolha nesse momento o excluiria de vez da imortalidade proporcionada pela experiência ou, ao contrário, poria pelo menos uma chance disso em suas mãos. Aquele que se recusa a abraçar uma oportunidade única perde o prêmio tão certamente como se tivesse tentado e falhado. Per contra, a opção trivial quando a oportunidade não é única, quando o que está em jogo é insignificante, ou quando a decisão é reversível e, posteriormente, se revela equivocada. Tais opções triviais são abundantes na vida científica. Um químico julga uma hipótese viva o suficiente para que passe um ano verificando-a: ele acredita nela a esse ponto. Porém, se suas experiências se mostrarem inconclusivas em algum aspecto, ele está redimido de sua perda de tempo, nenhum dano essencial foi causado.

Nossa discussão será facilitada se mantivermos essas distinções em mente.

II

A próxima questão a considerar é a própria psicologia da opinião humana. Quando olhamos certos fatos, é como se nossa natureza passional e volitiva se encontrasse na raiz de todas as nossas convicções. Quando olhamos para outros, parece-nos que eles não poderiam fazer mais nada após o intelecto ter dado seu veredicto. Vamos examinar este último caso primeiro.

Não parece despropositado, diante disso, supor que nossas opiniões possam ser modificáveis de acordo com a nossa vontade? Pode nossa vontade ajudar ou atrapalhar o intelecto em suas percepções da verdade? Podemos nós, pelo simples desejo, acreditar que a existência de Abraham Lincoln é um mito e que seus retratos na McClure’s Magazine são de alguma outra pessoa? Podemos nós, por qualquer esforço da vontade, ou por qualquer força do desejo de que isso seja verdade, acreditar que estamos bem quando nos encontramos na cama gemendo de reumatismo, ou sentir-nos seguros de que a soma de duas notas de 1 dólar que temos no bolso deve ser 100 dólares? Podemos dizer qualquer uma dessas coisas, mas nos é absolutamente impossível acreditar nelas; e exatamente dessas coisas é constituída toda a tessitura das verdades em que acreditamos – fatos estabelecidos, imediatos ou remotos, como disse Hume, e relações entre idéias, que existem ou não para nós na medida em que as vemos assim, e que, se não existirem, não poderão ser introduzidas por nenhuma ação de nossa parte.

Nos Pensamentos de Pascal, há uma célebre passagem conhecida na literatura como a aposta de Pascal. Nela, ele tenta nos convencer a adotar o cristianismo argumentando como se nossa preocupação com a verdade se assemelhasse a nossa preocupação com as apostas num jogo de azar. Traduzidas livremente, suas palavras são as seguintes: é preciso acreditar ou não que Deus existe – o que você fará? Sua razão humana não pode dizer. Entre você e a natureza das coisas está acontecendo um jogo que, no dia do juízo, dará cara ou coroa. Pese quais seriam seus ganhos e suas perdas se você apostasse tudo que tem na cara, ou na existência de Deus: se você ganhar nesse caso, o prêmio será a beatitude eterna; se perder, não perderá absolutamente nada. Se houvesse uma infinidade de chances e apenas uma para Deus nessa aposta, ainda assim seria aconselhável apostar tudo em Deus, pois, embora certamente você se arriscasse a uma perde finita por esse procedimento, qualquer perda finita é razoável, mesmo uma perda certa é razoável, caso haja uma mínima possibilidade de ganho infinito. Vá em frente, então, e use água benta, encomende missas; a crença virá e estupidificará seus escrúpulos – Cela vous dera croire et vous abêtira. Por que não? No fim das contas, o que você tem a perder?

Vocês provavelmente sentirão que, quando a fé religiosa se expressa dessa maneira, na linguagem da mesa de jogos, é sinal de que está reduzida a seus últimos trunfos. Certamente a própria crença pessoal de Pascal em missas e na água benta tinha razões bem outras; e essa sua página famosa não passa de uma argumentação dirigida aos outros, uma última busca desesperada de uma arma contra a inflexibilidade do coração descrente. Parece-nos que a fé em missas e água benta adotada intencionalmente após tal cálculo mecânico seria desprovida da alma interior da realidade da fé; e, se estivéssemos nós mesmos no lugar da Divindade, provavelmente teríamos um prazer especial em excluir os crentes dessa espécie de sua recompensa infinita. É evidente que, a menos que haja alguma tendência preexistente a acreditar em missas e água benta, a opção oferecida à vontade por Pascal não é uma opção viva. Certamente nenhum turco jamais voltou-se para missas e água benta por causa dessa argumentação; e mesmo para nós, protestantes, esses meios de salvação parecem impossibilidades tão previsíveis, que a lógica de Pascal, invocada especificamente para eles, não nos comove. Seria como se Mahdi nos escrevesse dizendo: “Sou o Esperado que Deus criou em seu resplendor. Sereis infinitamente felizes se professardes vossa fé em mim; caso contrário, sereis excluídos da luz do sol. Pesai, portanto, vosso ganho infinito, se eu for genuíno, em comparação com vosso sacrifício infinito, seu eu não for!” Sua lógica seria a mesma de Pascal; no entanto, ele a usaria em vão conosco, pois a hipótese que ele nos oferece é morta. Não há em nós nenhuma tendência a agir com base nela.

A discussão quanto a acreditar por nossa vontade parece então, sob certo ponto de vista, simplesmente tola. Sob outro ponto de vista, ela é pior do que tola, é vil. Quando nos voltamos para o magnífico edifício das ciências físicas e vemos como foi construído, quantos milhares de vidas morais desinteressadas encontram-se enterradas em suas fundações, que paciência e postergação, que sacrifício de preferências, que submissão às leis gélidas do fato externo estão gravados em suas pedras e em seu cimento, quão absolutamente impessoal ele se ergue em sua vasta majestade – diante disso, quão estúpido e desprezível parece cada pequeno sentimentais que vem soprando suas voluntárias espirais de fumaça e pretendendo decidir coisas a partir de seu próprio sonho pessoal! Podemos ter alguma dúvida de que aqueles criados na escola árdua e briosa da ciência terão vontade de vomitar tal subjetivismo de sua boca? Todo o sistema de lealdades que cresce nas escolas de ciência ergue-se contra sua tolerância; assim, é natural que aqueles que pegaram a febre científica passem para o extremo oposto e escrevam às vezes como se o intelecto incorruptivelmente confiável devesse sem hesitação preferir amargor e inaceitabilidade ao coração inebriado.

Fortalece minha alma saber

Que, embora eu pereça, a Verdade é esta – 

canta Clough, enquanto Huxley exclama: “Meu único consolo está na reflexão de que, por pior que nossa posteridade possa se tornar, enquanto eles adotarem a regra simples de não fingir acreditar no que não têm razão para acreditar, porque talvez seja vantajoso para eles assim fingir [a palavra “fingir” é certamente redundante aqui], não terão atingido o nível mais baixo de imoralidade”. E o delicioso enfant  terrible Clifford escreve: “A crença é profana quando conferida a afirmações não-provadas e não-questionadas, pelo conforto e prazer pessoal do crente… Quem quer que deseje a consideração de seus pares nessa questão deve guardar a pureza de sua crença com um verdadeiro fanatismo de cuidado atento, para que ela não venha a pousar de repente sobre um objeto indigno e adquirir uma mancha que jamais poderá ser removida… Se [uma] crença tiver sido aceita com base em evidências insuficientes [mesmo que a crença seja verdadeira, como Clifford explica na mesma página], o seu é um prazer roubado… Ela é pecadora porque é roubada em desrespeito a nossa obrigação para com a humanidade. Essa obrigação é nos guardar de tais crenças como de uma peste que pode rapidamente dominar nosso próprio corpo e, depois, se espalhar para o resto da cidade… É sempre errado, em toda parte, e para qualquer pessoa, acreditar em qualquer coisa com base em evidências insuficientes”.

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