Os Índios Conheciam a Propriedade Privada? – Luís da Câmara Cascudo

(Fonte: obra Informação de Historia e Etnografia (editado por TRADIÇÃO, 1944), constante do Acervo LUDOVICUS – INSTITUTO CÂMARA CASCUDO. Obs: Este blog está autorizado pelo Instituto Ludovicus a publicar o texto cascudiano Os Índios Conheciam a Propriedade Privada?)

 

Uma affirmativa que vae escorregando para os livros didacticos é que o indigena do Brasil não conhecia a propriedade privada. Sente-se que uma thése prestabelecida orienta os estudos ethnographicos. Serão elles cimentos posteriormente “reas” de proximas bases sociologicas. Nenguem mais terá tempo nem vontade de rever a velha documentação colonial e mesmo ethnologica, vinda de allemães, indicando o contrario. Ficará uma consequencia real, partida de premissas falsas. “O interesse é na História uma mau conselheiro” dizia o general Couto de Magalhães.

O indio brasileiro vivia de caça e pesca. Guerreiro por excellencia, só recorria aos rios e mar e ao encontro de animaes e aves, quando os inimigos escasseavam e os saques, tornados problematicos ou difficeis, afastavam a possibilidade dos ataques continuos. Para caçar e pescar tinha elles seus instrumentos variados e multiplos. Arapucas, mundéus, jiquis, aratacas, armadilhas submersas, flechas bifarpadas, para quebrar depois de ferir, sarabatanas, curabís, mil objectos de arremeço e espéra. Tudo era delle, exclusivamente delle, proprio, sagrado, inviolavel. São “instrumentos de trabalho” inalienaveis pela appropriação alheia, ensinam. Em sua casa, óca individual ou nas habitações colectivas, o amerába possuia esteiras, combucas, igaçabas, rêdes de pesca, paneiros, camucins, vinte coisas que eram sua mobilia, seu conforto, a installação do “home” selvagem. Tambem tudo era delle, proprio, sagrado, inviolavel. Todos estão de accôrdo. Pergunto: – esses instrumentos de trabalhos e esses objectos domesticos não eram “tudo” quanto representava a propriedade para o indigena? Sua mobilia, seu armario, seu “buffet”, sua crystalleira, seu almoxarifado? Tanto era aquilo para o indigena quanto é para nós o acervo complicado da nossa “impedimenta” familiar.

Não ja, em nenhuma fonte, nóta em contrario. O indio possuia, em pelo uso e gozo juridico, seus objetos de guerra, caça, pesca e residencia, podendo dar, vender, permutar ou destruir.

Mas não é esse ponto que se discute. O indio não conhecia propriedade privada immovel. A terra era bem communal. Tudo quanto se plantava e colhia, mesmo caça e pesca, distribuia-se entre todos. Ha, indiscutivelmente, um communismo primitivo. Tudo era de todos. Essa lição vem atravessando livros, conferencias e “communicados”. Quaes sejam as finalidades sociais dessas conclusões eruditas e desinteressadas, ignoro.

O indio não tinha a posse individual da terra? A terra era da tribu?

Qual seria, pois, o criterio de “propriedade” adoptado pela tribu? Devia, obrigatoriamente, haver trabalho collectivo num campo collectivo. Desta forma a producção pertencia a todos, recolhida num local privativo. Far-se-ia a distribuição equitativa ou proporcional ao esforço de cada um? Não se sabe. Sabe-se é que não ha noticia de um armazem, de um celeiro, de um deposito de mantimentos nos acampamentos indigenas. Sabe-se, por trinta viajantes e exploradores, que cada cabana guardava seus viveres, milhos, inhames, mandioca, corós, batatas, raizes farinaceas, carnes moqueadas. Cada cabana, cada familia tinha sua dispensa. É fácil verificar em qualquer narração de viagem ou perguntar a quem haja visitado um acampamento amerába. Dirão que poderá ser uma forma actual. Procurem um exemplo nos velhos livros ou nas impressões de Karl von den Steinen, Ehrenreich, Koch-Grünberg, Mac Schmidt, Fritz Krause, em Martius, em Wied Neuwied… Fico esperando o desmentido…

Bem singular que haja trabalho collectivo, producção collectiva e um deposito domestico. A distribuição dar-se-ia nas safras, na ocasião das colheitas? É obvio que não. A collectividade tem outras exigencias. Desde que a producção pertence a todos, recolhe-se nos silos, nos armazens, para enfrentar a fome, regulando o arythmismo climaterico ou prevendo as futuras guerras e sêccas. Assim foi no Egypto, na Assyria, na Media. E lá havia propriedade privada.

Entre os indios do Brasil houve terra trabalhada por todos e terra de trabalho individual. Para a primeira orientava-a o tuixáua, o chefe, alimentando os trabalhadores, dando-lhes bebidas e arranjando bailes noturnos. Justamente como nas “esfolhadas” de Portugal. Esse habito indigena era o puxirum ou muxirum, poxirão, potirão, chamado no nordeste brasileiro, “ajuda”. O proprietario “convidava” homens para ajuda-lo. Pagava-lhes em festas, comidas alegradas pelos “foles”, as “gáitas” no Rio Grande do Sul, accordeão, sanfonas, harmonios. Era um dever sertanejo acudir aos pedidos de ajuda. Outras ajudas eram devidas nos incendios do pasto ou quando as enchentes ameaçavam os paredões dos açudes. Habito sagrado da solidaderiedade que a civilização materialista matou e perverteu. O puxirão e a ajuda, são a mesma entidade, no sul e no norte do Brasil. Esse era, logicamente, o trabalho colectivo e nelle fala o padre Ivo d’Evreux na “Viagem ao Norte do Brasil” (1613-1614) nas terras do Maranhão tupinambá.

Os Principaes, que ordinariamente têm mesa franca para o que necessitam de roças maiores, preparam um cauin geral, e como todos partilham dele, se incumbem de cuidar nas plantações, o que fazem com alegria numa ou duas manhãs, e depois vão beber na casa daquele para quem trabalharam…

O facto incontestado do indigena ter em sua casa o poder dispôr de viveres, denuncia a unilateralidade do “communismo dos indios brasileiros”. Mas não é somente esse o elemento adverso. Certos indios não tinham farinha, carnes moqueadas ou piracuí (farinha de peixe) e vão pedir aos que têm. O gesto generoso do indio, cedendo parte de seus viveres, prova uma obrigatoriedade na dadiva?

Pensemos que o indio, caçador, pescador e guerreiro, trabalhava pouco nas roçarias, dando-as á dedicação da mulher, das filhas e dos escravos. Elas podiam trabalhar “para outrem” mas recolhiam e “possuiam” toda sua producção, conduzindo-a para a casa, dispondo dela tão amplamente como das flechas, tacapes, canitáres e enduapes.

Dirão que, de accôrdo com as historias, o indio distribuia toda a caça abatida. Por menor que fosse o pedço, esfarelava-o para que todos tivessem um diapo. É verdade. Abbeville, Evreux, Lery, Thevet, os sabios cathequistas da Companhia de Jesus, dão testemunho. Essa divisão explica-se pela solidariedade tribal, pelo liame affectuoso, expontaneo e pessoal do doador. Não havia força coercitiva para determinar a offerta. O que cada indio individualmente caçava lhe pertencia, integral e absolutamente. Se assim não fosse, pergunta Max Schmidt, a caça abatida por um indio não podia ser dada de presente como dote da noiva. O indio, durante tempos, caçava e pescava, presenteando seu futuro sogro. E sempre dispõe de peças para permutar por objetos que lhe interessam. Como justificar essa estranha “obrigação distributiva ante o livre arbitrio de dispor da cousa no sentido de sua vontade?

O indio não tinha, além de seus instrumentos de trabalho e utensilios domesticos, nenhuma noção de propriedade. Como explicar a posse completa do escravo, de outro homem, obtido em guerra? O escravo podia ser devorado ou ser ao seu senhor na caça e pesca. Não era propriedade da tribu. Hans Staden foi “propriedade” individual de um tupinambá e contou-nos sua historia num livrinho conhecido. D’Evreux dá dois capitulos de seu livro, XV e XVI, (edição de 1929, Rio de Janeiro) sobre as leis referentes aos escravos. Só podiam ser propriedade da tribu, e devorados logo depois, quando fuguam da posse de seu senhor.

Uma das maiores injurias que se podia fazer a um indigena era chamal-o mundiá (ladrão, mundápora, para Stradelli). Nas comunidades primitivas (se as houve) o furto seria vocabulamente inexistente por não constituir crime mas apenas transferencia de posse util.

Sabemos por todos viajantes e ethnografos, que o indio é sepultado com todos os seus objectos de uso e de guerra Posse dos objectos dirão. Consequencia da propriedade privada, respondo.

Quando o principe Maximiliano de Wied-Neuwied visitou os botocudos no sertão baiano, em 1817, assistiu um duelo a páu, entre dois chefes indigenas, Jeparack e Kerengnatnuck (“Reise nach Brasilien”, 1º, pag. 370), muito reproduzido na imprensa e livros embora sem citação de procedencia. O episodio é expressivo. Kerengnatuck fôra caçar pecaris nas reservas de Jeparack. Este, offendido, não sei em que se não tivesse noção de propriedade privada sobre os pecaris e seu terreno de caça, desafiou, não o violador de “sua” propriedade, mas o chefe da tribu, Gepakeiu, então ausente. Kerengnatnuch acceitou, em nome de seu soberano, a luta, e mediram-se a pau.

Dificil explicar esse “communismo primitivo”, tocante aos pecaris…

Lembremos que o indio não era verdadeiramente agricultor. Deixava essa tarefa aos de sua familia. Não estava fixado definitivamente. Era nomade? Parece que não. Circulava  dentro de uma região, sempre a mesma, mudando os pousos segundo as necessidades de alimentação. Esgotada a caça e rareada a pesca, mudava o acampamento, destruindo as palhoças e levando os melhores utensilios. Ficava nas margens do mar ou dos rios quando os cardumes apareciam nas épocas de desova. Certas frutas faziam a tribu demorar nas colheitas. Assim os cajús, oitis, genipapos. A estáda num local dependia das condições da caça e da pesca. As mulheres, ajudadas, plantavam aboboras, melancias, macacheiras e inhames, corós, mandioca para a farinha, base da alimentação, tratada em varios typos, e guardada em paneiros de junco ou cipó. A aclimatação do homem na agricultura foi lenta e na proporção que a guerra se tornava custosa e o “branco” mais poderoso. Sendo a agricultura a fixadora do homem, a força pivotante, não é possível termos o indio com a noção ampla e actual de propriedade uma vez que ele não era agricultor. Era um aproveitador transitorio dos frutos e raizes e não um cultivador obstinado e permanente do solo. Naturalmente decorriam as noções millenarias da propriedade da intuição, comum a todas as idades do homem, de que não havia um direito à propriedade da terra independente do trabalho directo. La propriedade, ensina Andrés Giménes Soler, nace com el cultivo. O cultivo iniciava-se para o indigena. Mas a idéa de propriedade privada já era, não apenas esboçada e vaga, mas positiva e delineada em traços energicos e claros.

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