O Nascimento da Medicina Científica (com a íntegra do Juramento de Hipócrates) – Giovanni Reale

(Giovanni Reale e Dario Antiseri, em História da Filosofia – Antigüidade e Idade Média. São Paulo: PAULUS, 1990)

1. Como nasceram o médico e a medicina científica

A mais antiga prática médica era exercida por sacerdotes. A mitologia afirmar que o centauro Quíron ensinou aos homens a arte de curar os males. Sempre segundo a mitologia, Quíron teve por discípulo Esculápio, considerado filho de Nume e divinizado, sendo chamado de “médico” e “salvador” e tendo por símbolo a serpente. Conseqüentemente, foram-lhe dedicados templos em locais salubres e posições particularmente favoráveis, além de ritos e cultos. Os doentes eram levados aos tempos e “curados” através de práticas ou ritos mágico-religiosos. Mas, pouco a pouco, ao lado dos sacerdotes de Esculápio, também começaram a aparecer médicos “leigos”, que se distinguiam dos primeiros por uma preparação específica. Esses médicos podiam exercer sua arte em tendas e em moradas fixas ou então viajando (médicos ambulantes). Para a preparação de tais médicos, ao lado dos tempos de Esculápio, surgiram escolas, para onde afluíam os doentes e, portanto, onde era possível o contato com o maior número e a maior variedade de casos patológicos. Assim, é compreensível que durante muito tempo o nome de “Asclepíades” tenha sido usado não apenas para indicar os sacerdotes de Esculápio, mas também todos aqueles que praticavam a arte de curar os males que era própria do deus Esculápio, ou seja, todos os médicos.

As mais famosas escolas médicas da Antigüidade surgiram em Crotona (onde ganhou fama Alcmeon, seguidor da seita dos pitagóricos), em Cirene, em Rodes, em Cnido e em Cós. Mas foi sobretudo em Cós que a medicina elevou-se ao mais alto nível, por mérito particular de Hipócrates, que, desfrutando dos resultados das experiências das anteriores gerações de médicos, soube dar à medicina a estatura de “ciência”, ou seja, de conhecimento perseguido com um método preciso.

Pelo que dissemos, fica claro que a ciência médica não nasceu das práticas dos asclepíades, sacerdotes curadores, mas sim da experiência e das pesquisas dos médicos dessas escolas de medicina anexas aos templos, médicos que, pouco a pouco, foram se distanciando dos primeiros até romperem decididamente os laços com eles, definindo conceitualmente a sua própria identidade específica.

Mas, para se compreender como isso foi possível e, portanto, como é que a medicina também chegou a ser uma criação dos gregos, é necessário recordar alguns fatos muito importantes.

Em nosso século, foi descoberto um papiro contendo um tratado médico que comprova que, em sua sabedoria, os egípcios já haviam atingido um estágio bastante avançado na elaboração do material médico, com a indicação de algumas regras e de alguns nexos de causa e efeito. Desse modo, devemos convir que os antecedentes da medicina se encontram no Egito. Mas, justamente, trata-se apenas de “antecedentes”, que estão para a medicina grega na mesma relação em que as descobertas matemático-geométricas egípcias estão para a criação da ciência dos números e da geometria grega.

Foi a “mentalidade científica” criada pela filosofia da physis a tornar possível a constituição da medicina como ciência. W. Jaeger ilustrou perfeitamente esse ponto em uma página exemplar, que vale a pena ler: “Sempre e em toda parte houvera médicos. Mas a arte sanitária dos gregos só se tornou uma arte metodicamente consciente pela eficácia exercida sobre ela pela filosofia jônica da natureza. Essa verdade não deve ser em absoluto obscurecida em função da atitude declaradamente antifilosófica da escola hipocrática, à qual pertencem as primeiras obras da medicina grega que encontramos. Sem o esforço de pesquisas dos mais antigos filósofos naturalistas jônicos no sentido de descobrir uma explicação natural para todo fenômeno, sem a sua tentativa de remeter cada efeito a uma causa e revelar na cadeia de causas e efeitos uma ordem universal e necessária, sem sua confiança inabalável de que se pode penetrar todos os segredos do universo através da observação despreconceituosa das coisas e por força do conhecimento racional, a medicina nunca se teria tornado uma ciência. (…) Certamente, como hoje estamos em condições de reconhecer, a medicina egípcia já havia conseguido erguer-se acima daquela prática de encantamentos e esconjuros que ainda estava viva no antigo costume da mãe-pátria grega nos templos de Píndaro. Mas, na escola daqueles pensadores de leis universais que foram os filósofos seus precursores, só a medicina grega conseguiu elaborar um sistema teorético sobre o qual pudesse se apoiar um verdadeiro movimento científico.”

Ademais, à influência da filosofia dos físicos, deve-se agregar também uma particular agudeza argumentativa, herdada dos sofistas e bem visível em alguns tratados hipocráticos.

Em conclusão, como já recordamos, constatamos a ocorrência desse fenômeno de importância fundamental para se compreender o pensamento ocidental: é no âmbito da mentalidade filosófica, ou seja, no âmbito do racionalismo etiológico por ela criado, que pôde nascer, se autodefinir e se desenvolver a ciência médica (assim como as demais ciências).

2. Hipócrates e o Corpus Hippocraticum

Como já dissemos, Hipócrates é o “herói fundador” da medicina científica. Infelizmente, estamos muito mal informados sobre a sua vida. Parece que ele viveu na segunda metade do século V e nas primeiras décadas do século IV a. C. (conjecturalmente, alguns propoõem as datas de 460-370 a. C., mas são datas aleatórias). Hipócrates foi o chefe da escola de Cós e ensinou medicina em Atenas, onde Platão e Aristóteles o consideraram como o paradigma do grande médico. Ele ficou tão famoso que a Antigüidade nos legou sob o seu nome não apenas as suas obras, mas também todas as obras de sua escola e, melhor dizendo, todas as obras de medicina dos séculos V e IV. E assim nasceu aquilo que é designado como Corpus Hippocraticum, constituído por mais de cinqüenta tratados, que representa a mais importante documentação antiga de caráter científico que chegou até nossas mãos.

Os livros que podem ser atribuídos com uma certa margem de probabilidade a Hipócrates ou que podem ser considerados reflexos de seu pensamento, são: A medicina antiga, que é uma espécie de manifesto que proclama a autonomia da arte médica; O mal sagrado, que é uma polêmica contra a mentalidade da medicina mágico-religiosa; O prognóstico, que constitui a descoberta da dimensão essencial da ciência médica; Sobre as águas, os ventos e os lugares, na qual são evidenciados os laços entre doenças e meio ambiente; as Epidemias, que são uma formidável coletânea de casos clínicos; os famosos Aforismos e o célebre Juramento, do qual falaremos adiante.

Como a criação da medicina hipocrática marca o ingresso de uma nova ciência na área do saber científico e como Sócrates e Platão foram amplamente influenciados pela medicina, que, nascida da mentalidade filosófica, estimulou a especulação filosófica, por seu turno, devemos falar mais em pormenores sobre as maiores obras do Corpus Hippocraticum. A esse respeito, é ainda Jaeger quem escreve: “Não se está exagerando quando se diz que a ciência ética de Sócrates, que ocupa o centro da disputa nos diálogos platônicos, não teria sido possível ser pensada sem o modelo da medicina, à qual Sócrates se remete tão freqüentemente. A medicina lhe era mais afim do que qualquer outro ramo do conhecimento humano então conhecido, inclusive a matemática e as ciências naturais.”

Vejamos, portanto, algumas das mais famosas idéias hipocráticas (a tradução das passagens citaremos foi extraída de Opera di Ippocrate, org. por M. Vegett, UTET, Turim).

3. As obras primas do Corpus Hippocraticum

3.1. “O mal sagrado” e a redução de todos os fenômenos morbosos a uma mesma dimensão.

Na antigüidade, o “mal sagrado” era a epilepsia, no sentido que era considerada efeito de causas não-naturais e, portanto, conseqüência de uma intervenção divina. No lúcido escrito que leva esse título, Hipócrates demonstra a seguinte tese, de modo exemplar: a) a epilepsia é considerada “mal sagrado” porque se apresenta como um fenômeno estupefaciente e incompreensível; b) na realidade, porém, há doenças não menos estupefacientes, como certas manifestações febris e o sonambulismo; portanto, a epilepsia não é diferente dessas outras doenças; c) assim, foi a ignorância da causa que levou a considerar a epilepsia como “mal sagrado”; d) assim sendo, aqueles que pretendem curá-la com atos de magia são embusteiros e impostores; e) ademais, estão em contradição consigo mesmos, pois pretendem curar com práticas humanas males julgados divinos, de modo que essas práticas, longe de serem expressões de religiosidade e devoção, são ímpias e atéias, porque pretenderiam exercer um poder sobre os deuses.

O poderoso racionalismo dessa obra revela-se de particular relevo, pois Hipócrates, longe de ser um ateu, mostra ter compreendido perfeitamente a estatura do divino, ao sustentar precisamente nessas bases a impossibilidade de misturar o divino, de modo absurdo, com as causas das doenças; as causas de todas as doenças pertencem a uma única e mesma dimensão. Escreve ele: “(…) não creio que o corpo do homem possa ser contaminado por um deus, o mais corruptível pelo mais sagrado. Mas, mesmo que seja contaminado ou, de qualquer modo, atingido por um agente externo, ele será mais purificado e santificado por um deus do que contaminado. Certamente, é o divino que nos santifica, purifica e limpa dos nossos gravíssimos e ímpios erros: nós mesmos traçamos os limites dos tempos e recintos dos deuses para que não os ultrapasse ninguém que não esteja puro e, ao entrar neles, nos aspergimos, não porque estejamos por nos contaminar, mas sim para nos limpar se já carregamos alguma mancha sobre nós.”

Qual é, então, a causa da epilepsia: É uma alteração do cérebro derivada das mesmas causas racionais de que derivam todas as outras alterações morbosoas, uma “adição” ou “subtração” de seco e úmido, quente e frio etc. Portanto, conclui Hipócrates, quem, “através do regime, sabe determinar nos homens o seco e o úmido, o frio e o quente, também pode curar esse mal, se conseguir perceber o momento oportuno para um bom tratamento, sem qualquer purificação ou magia”.

3.2 A descoberta da correspondência estrutural entre as doenças, o caráter do homem e o ambiente na obra Sobre as águas, os ventos e os lugares

O tratado Sobre as águas, os ventos e os lugares está entre os mais extraordinários do Corpus Hippocraticum. O leitor atual não pode deixar de ficar estupefato diante da “modernidade” de algumas opiniões nele expressas.

São duas as teses de fundo:

  1. A primeira constitui uma ilustração paradigmática do que já destacamos acerca da própria colocação da medicina como ciência, derivada do discurso dos filósofos na sua estrutura racional. O homem é visto no conjunto em que se encontra naturalmente inserido, ou seja, no contexto de todas as coordenadas que constituem o ambiente em que ele vive: as estações, suas mudanças e suas influências, os ventos típicos de cada região, as águas características dos lugares e suas propriedades, as posições dos lugares, o tipo de vida dos habitantes. O “pleno conhecimento de cada caso individual”, portanto, depende do conhecimento do conjunto dessas coordenadas, o que significa que, para compreender a parte, é preciso compreender o todo ao qual a parte pertence. A natureza dos lugares e daquilo que os caracteriza incide sobre a constituição e o aspecto dos homens e, portanto, sobre a saúde e sobre as doenças. O médico que quer curar o doente deve conhecer precisamente essas correspondências.
  2. A outra tese (a mais interessante) é que as instituições políticas também incidem sobre o estado de saúde e as condições gerais dos homens: “Parece-me que é por essas razões que são fracos os povos da Ásia – e, além disso, também pelas instituições. Com efeito, grande parte da Ásia é dirigida por monarquias. Onde os homens não são senhores de si mesmos e das próprias leis, mas sujeitos a déspotas, ele não pensam em se adestrar para a guerra, mas sim em como parecer inaptos para o combate.” A democracia, portanto, tempera o caráter e a saúde, ao passo que o despotismo produz efeitos opostos.

3.3. O manifesto da medicina hipocrática: A medicina antiga

Como dissemos, a medicina é amplamente devedora da filosofia. Mas agora é necessário explicitar melhor essa afirmação. Surgida do contexto do esquema geral de racionalidade instaurado pela filosofia, a medicina teve que distanciar-se da filosofia para não ser por ela reabsorvida. Com efeito, a escola médica itálica havia feito uso dos quatro elementos de Empédocles (água, ar, terra e fogo) para explicar doença e saúde, vida e morte, caindo em um dogmatismo que esquecia a experiência concreta e que Hipócrates considera até deletério. A medicina antiga é uma denúncia desse dogmatismo e a reivindicação de um estatuto antidogmático para a medicina, uma independência em relação à filosofia de Empédocles. Escreve Hipócrates: “Estão profundamente em erro todos os que puseram-se a falar ou escrever sobre medicina fundamentando o seu discurso em um postulado, o quente e o frio, o úmido e o seco ou qualquer outro que tenham escolhido, simplificando em excesso a causa original das doenças e da morte dos homens, atribuindo a mesma causa a todos os caos, porque se baseiam em um ou dois postulados.”

Hipócrates não nega que esses fatores entrem na produção da doença e da saúde, mas acha que eles entram de modo muito variado e articulado, porque, na natureza, tudo está misturado junto (note-se aqui como, habilmente, Hipócrates vale-se do postulado de Anaxágoras, segundo o qual tudo está em tudo, precisamente para derrotar os postulados de Empédocles): “Alguém, no entanto, poderia dizer: ‘Mas quem está febricitante, por febres ardentes, pulmonites e outras doenças violentas, não se liberta tão rápido da febre, nem nesse caso há alternância de quente e frio’. Mas eu considero que precisamente essa é uma grande prova de que os homens não ficam febris simplesmente pelo quente, que não é a única causa dos males, mas sim que a mesma coisa é ao mesmo tempo amarga e quente, ácida e quente, salgada e quente e assim ao infinito e, reciprocamente com as outras propriedades, também é fria. Assim, o que incomoda é tudo isso, incluindo-se aí também o quente, que participa da força do fato dominante e junto com ele se agrava e aumenta, mas que, em si mesmo, não tem outras propriedades fora daquelas que lhe são próprias.”

O conhecimento médico é um conhecimento preciso e rigoroso da dieta conveniente e de sua justa medida. Essa explicitação não pode derivar de critérios abstratos ou hipotéticos, mas apenas da experiência concreta, da “sensação do corpo” (parece-nos estar ouvindo um eco de Protágoras!).

Assim, o discurso médico não deve se dar em torno da essência do homem geral, sobre as causas do seu aparecimento e questões semelhantes. Deve desenvolver-se em torno do que é o homem como um ser físico concreto que tem relação com aquilo que come, com aquilo que bebe, com o seu específico regime de vida e coisas semelhantes: “Na verdade, eu considero que a ciência de algum modo certa da natureza não pode derivar de qualquer outra coisa senão da medicina e que só será possível adquiri-la quando a própria medicina for toda ela explorada com método correto. Mas disso estamos muito distantes, isto é, de conquistas um saber exato sobre o que é o homem, sobre as causas que determinam o seu aparecimento e outras questões semelhantes. Mas pelo menos uma coisa parece-me necessário que o homem saiba sobre a natureza e faça todo esforço para sabê-lo, se quiser de alguma forma cumprir seus deveres, ou seja, o que é o homem em relação com aquilo que come, com aquilo que bebe e a todo o seu regime de vida e que conseqüências derivam de cada coisa para cada um.”

As Epidemias (que significam “visitas”) mostram concretamente a agudeza que Hipócrates exigia da arte médica e o método do empirismo positivo em aplicação, como descrição sistemática e ordenada de várias doenças – únicos elementos sobre os quais podia se basear a arte médica.

Essa imponente obra está toda perpassada por aquele espírito que, como já se observou justamente, está condensado no princípio com que se abre a célebre coletânea de Aforismos: “A vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugaz, o experimento arriscado, o juízo difícil.”

Por fim, devemos recordar que Hipócrates codificou a “prognose”, que, como já se observou, representa no contexto hipocrático “uma síntese de passado, presente e futuro”: somente no arco da visão do passado, do presente e do futuro do doente é que o médico pode projetar a terapia perfeita.

4. O Juramento de Hipócrates

Hipócrates e sua escola não se limitaram a dar à medicina o estatuto teorético de ciência, mas também conseguiram determinar com uma lucidez verdadeiramente impressionante a estatura ética do médico, o ethos ou identidade moral que deve caracterizá-lo. À parte o pano de fundo social bem visível no comportamento expressamente tematizado (antigamente, a ciência médica passava de pai para filho, relação que Hipócrates identifica com a existente entre mestre e discípulo), o sentido do juramento se resume numa proposta simples que, em termos modernos, poderíamos expressar assim: médico, lembra-te de que o doente não é uma coisa ou um meio, mas um fim, um valor, e portanto comporta-te em decorrência disso. Ei-lo integralmente:

“Por Apolo médico, por Esculápio, por Higéia, por Panacéia e por todos os deuses e deusas, invocando-os por testemunhas, juro manter este juramento e este pacto escrito, segundo as minhas forças e o meu juízo. Considerarei quem me ensinou esta arte como a meus próprios pais, porei meus bens em comum com ele e, quando tiver necessidade, o pagarei do meu débito e considerarei seus descendentes como meus próprios irmãos, ensinando-lhes esta arte, se desejarem aprendê-la, sem compensações nem compromissos escritos. Transmitirei os ensinamentos escritos e verbais e toda outra parte do saber aos meus filhos, bem como aos filhos de meu mestre e aos alunos que subscreveram o pacto e juraram segundo o uso médico, mas a mais ninguém. Valer-me-ei do regime para ajudar os doentes, segundo as minhas forças e o meu juízo, mas me absterei de causar dano e injustiça. Não darei a ninguém nenhum preparado mortal, nem mesmo se me for pedido, e nunca darei tal conselho; também não darei às mulheres pessários para provocar aborto. Preservarei minha vida e minha arte puras e santas. Não operarei nem mesmo quem sofre do ‘mal de pedra’, deixando o lugar para homens e especialistas nessa prática. Em todas as casas em que entrar, irei para ajudar os doentes, abstendo-me de levar voluntariamente injustiça e danos, especialmente de qualquer ato de libidinagem nos corpos de mulheres e homens, livres ou escravos. Tudo aquilo que possa ver e ouvir no exercício de minha profissão e também fora dela, nas minhas relações com os homens, se for algo que não deva ser divulgado, calar-me-ei, considerando-o como um segredo sagrado. Se eu mantiver este juramento e não rompê-lo, que me seja dado desfrutar o melhor da vida e da arte, considerado por todos e sempre honrado. No entanto, se me tornar transgressor e perjuro, que seja colhido pelo contrário disso.”

Talvez nem todos saibam, mas ainda hoje os médicos prestam o juramento de Hipócrates mostrando a que ponto a civilização ocidental é devedora dos gregos.

5. O tratado Sobre a natureza do homem e a doutrina dos quatro humores

A medicina hipocrática passou para a história como uma medicina baseada na doutrina dos quatro humores: “fleuma”, “sangue”, “bile amarela” e “bile negra”.

Ora, no Corpus Hippocraticum há um tratado, intitulado A natureza do homem, que codifica de modo paradigmático essa doutrina. Os antigos consideravam-no como sendo de Hipócrates, mas parece que o autor foi Políbio, genro de Hipócrates. Por outro lado, a rígida sistematização desse tratado sobre A natureza do homem não se coaduna com o conteúdo de A medicina antiga. Na realidade, tudo o que Hipócrates dizia em A medicina antiga precisava ser completado teoricamente com um esquema geral que fornecesse os quadros dentro dos quais se deveria ordenar a experiência médica. Hipócrates havia falado de “humores”, mas sem definir sistematicamente o seu número e as suas qualidade. Também havia falado da influência do quente, do frio e das estações, como vimos, mas apenas como coordenadas ambientais. Políbio combinou a doutrina das quatro qualidades, proveniente dos médicos itálicos, com as doutrinas hipocráticas oportunamente desenvolvidas, compondo o seguinte quadro: a natureza do corpo humano é constituída por sangue, fleuma, bile amarela e bile negra; o homem está “sadio” quando esses humores estão “reciprocamente bem temperados por propriedade e quantidade” e a mistura é completa; entretanto, está “doente” quando “há excesso ou carência deles” ou quando falte aquela condição de “bem temperados”; aos humores correspondem as quatro estações, bem como quente e frio, seco e úmido.

A figura [de capa desta postagem] ilustra bem esses conceitos, com algumas explicitações posteriores (o primeiro círculo representa os elementos de origem itálica, o segundo as qualidades correspondentes, o terceiro os humores, o quarto as estações correspondentes e afins; os últimos dois círculos representam os temperamentos do homem e as suas relativas predisposições para as doenças; poder-se-ia também acrescentar as correspondentes fases da vida do homem, em si mesmas, mas elas são óbvias, devido à perfeita coincidência com as estações).

Esse claro esquema, que conciliava instâncias opostas, e a lúcida síntese das doutrinas médicas nele baseada garantiram um imenso sucesso ao tratado. Galeno iria defender a autenticidade hipocrática do conteúdo desse texto e o completaria com uma elaborada doutrina dos “temperamentos”, de sorte que o esquema manteve-se como uma pedra de toque na história da medicina e um ponto de referência durante dois milênios.

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