Platão: a Arte Deseduca, Corrompe e é Mentirosa – Giovanni Reale

(Giovanni Reale, História da Filosofia Grega e Romana, Volume III – Platão. São Paulo: Edições Loyola, 2014. Imagem: Narciso, de Caravaggio.)

A problemática platônica da arte deve ser vista em conexão estreita com a temática metafísica e dialética, pois somente a partir de tal conexão torna-se plenamente inteligível. Com efeito, ao determinar a essência, a função, o papel e o valor da arte, Platão preocupa-se somente com o seguinte: estabelecer o valor de verdade que a arte possui, ou seja, 1) se, e em que medida, ela se aproxima do verdadeiro; 2) se faz o homem melhor; 3) se possui socialmente valor educativo ou não.

Como é sabido suas respostas são totalmente negativas: 1) a arte não desvela, mas oculta o verdadeiro, porque não conhece; 2) não melhora o homem, mas o corrompe, porque é mentirosa; 3) não educa, mas deseduca, porque se dirige às faculdades irracionais da alma, que são nossas partes inferiores.

Tentemos compreender mais profundamente as razões dessa condenação que permaneceu quase sem apelação em todos os diálogos. Já nos primeiros escritos, Platão assume uma atitude negativa diante da poesia, considerando-a decididamente inferior à filosofia. O poeta nunca é tal por ciência ou por conhecimento, mas por intuição irracional. Quando compõe, o poeta é inspirado, está “fora de si”, é “invadido” e, portanto, inconsciente: não sabe dar razão do que faz nem sabe ensiná-lo a outro. O poeta é poeta por xxxx, xxxxx, isto é, por sorte divina, não por virtude de conhecimento.1 Eis a passagem do Fedro a mais significativa a esse respeito:

[…] O terceiro é a invasão e o delírio vindo das Musas que, apoderando-se de uma alma pura e delicada, excitam-na e a arrastam fora de si na inspiração báquica, em cânticos e outras poesias e, revestindo de glória inúmeros feitos dos antigos, ensina aos pósteros. Mas quem chega às portas da poesia sem o delírio das Musas, julgando que poderá ser um poeta de valor apenas pela habilidade artística, é um poeta incompleto, e a poesia de quem permanece no seu são juízo é obscurecida pela dos que estão possuídos pelo delírio.2

Mais exatas e determinadas são as concepções da arte que Platão exprime no décimo livro da República. A arte em todas as suas expressões (isto é, seja como poesia, seja como arte pictórica e plástica) é, do ponto de vista ontológico, uma mimesis, vale dizer, uma “imitação” de coisas e acontecimentos sensíveis. Tanto a poesia como as artes figurativas em geral descrevem homens, fatos e acontecimentos de vários tipos, procurando reproduzi-los com palavras, cores, relevos plásticos. Ora, sabemos que as coisas sensíveis são, o ponto de vista ontológico, não o ser verdadeiro, mas a imitação do ser verdadeiro: são uma “imagem” do “paradigma” eterno das Ideias e, assim, distam do verdadeiro na medida em que a cópia dista do original. Ora, se a arte, por sua vez, é imitação das coisas sensíveis, segue-se então que ela acaba sendo uma imitação de uma imitação, uma cópia que reproduz uma cópia, estando mais distante do verdadeiro de quanto o estão as coisas sensíveis: ela está “três graus longe da verdade”. Eis, a respeito, as cruas palavras de Platão:

[…] Em vista de qual dos dois fins a pintura é feita em cada caso particular? Talvez com o fim de imitar o ser como ele é, ou então com o fim de imitar a aparência tal como aparece, sendo imitação da aparência ou da verdade?

– Da aparência, disse ele.

– Portanto, a arte imitativa está longe do verdadeiro e, ao que parece, realiza todas as coisas na medida em que não atinge senão uma pequena parte de cada uma e esta somente como uma imagem.3

Logo, a arte figurativa imita a mera aparência e, assim, os poetas falam sem saber e sem conhecer aquilo de que falam; a sua fala, do ponto de vista do verdadeiro, é um jogo ou uma brincadeira.

Então, o imitador não terá nem ciência nem opinião reta daquilo que imita, no que fiz respeito ao belo e ao feio.

– Parece que não.

– Portanto, será o imitador na poesia amável quanto à sabedoria das coisas que faz?

– Não muito!

– E, no entanto, ele imitará não conhecendo para cada coisa sob que aspectos é boa ou má; mas, ao que parece, desde que seja bela à maioria que não sabe nada, assim ele a imitará.

– E mais o quê?

– Pois bem, sobre este ponto estamos de acordo o suficiente, ou seja, que o imitador nada sabe de válido sobre as coisas que imita, e que a imitação é um jogo e não uma coisa séria, e que aqueles que compõem a poesia trágica em iambos e hexâmetros são imitadores no grau máximo em que se possa ser.

– É exatamente assim.4

Por conseguinte, Platão está convencido de que a arte se dirija não à parte melhor, mas à parte menos nobre da nossa alma.

[…] A pintura e, em geral, a arte da imitação cumprem, por um lado a sua obra permanecendo longe da verdade, de outro se dirigem ao que é em nós mais afastado da inteligência, com ele se entretém e lhe são amigas e companheiras, não pretendendo nada de são e verdadeiro.5

A arte é, pois, corruptora e é, em larga medida, exilada ou mesmo eliminada do Estado perfeito, a menos que se submeta às leis do bem e do verdadeiro.6

Sobre essa concepção, muito se escreveu e muito se disse, e houve quem, chocado com a sua crueza, pensou em devê-la moderar e redimensionar, invocando o fato de que Platão aprecia em grau sumo a beleza e a Idéia do Belo, à qual atribuiu mesmo o privilégio de ser, somente ela, “visível” entre todas as realidade inteligíveis. Muitas vezes foram citadas as passagens do Banquete e do Fedro, verdadeiros hinos à beleza. Na verdade, esse associar o problema da arte ao problema da beleza é historicamente pouco correto, ao menos no contexto platônico. Com efeito, nosso filósofo liga a beleza não tanto à arte quanto ao eros e à erótica que, como veremos, têm outro sentido e função. É inútil tentar, valendo-se das aquisições da estética modernas, encontrar em Platão o que nele não há, ou torcer suas afirmações, noutro sentido.

A verdade é que a arte não tem, para Platão, uma esfera e um valor propriamente autônomos: ela vale somente na medida em que possa ou saiba pôr-se a serviço da verdade.7

É paradigmático, a esse propósito, o que Platão diz a respeito de alguns versos que inspiram o temor da morte e que ele propõe excluir da Ilíada e da Odisseia no projeto da sua Cidade perfeita:

Rogaremos a Homero e aos outros poetas que não fiquem indignados se cancelarmos esses versos e todos os outros desse tipo: não certamente porque não sejam poéticos e agradáveis aos ouvidos da maioria, mas porque, quanto mais poéticos tanto menos devem ser ouvidos pelas crianças e pelos homens que devem ser livres [..]8

É evidente que Platão não nega de modo algum à arte a magia e o poder que lhe são próprios, mas nega toda validez a esse poder quando abandonados a si mesmo de maneira autônoma e quando não submetido aos preceitos imutáveis do logos verdadeiro.

Em suma, Platão não negou o poder da arte, mas negou que a arte devesse valer unicamente por si mesma: ou a arte serve ao verdadeiro ou serve ao falso e tertium non datur. Se, do pondo de vista da verdade, a arte quiser “salvar-se”, deve submeter-se à filosofia, única capaz de alcançar a verdade, e o poeta deve obedecer às regras e à dialética do filósofo.

Nós, modernos, que proclamamos a absoluta liberdade da arte e consideramos intangível o dogma da arte pela arte, poderemos aduzir contra Platão numerosas aquisições da estética e demonstrar o lado positivo que, sob vários aspectos, há na arte. Não obstante isso, não podemos dizer que nada de verdadeiro exista na posição platônica. É bem difícil negar que, ao libertar-se do verdadeiro metafísico e ético, a arte não tenha muitas vezes arriscado a tornar-se um jogo vazio; ou que, em certos casos, tenha acabado por dirigir-se ao que há de pior em nós e, muitas vezes, tenha contribuído, justamente como Platão advertiu, para nos deixar perdidos em meras aparências, como quando se deixou levar a excessos quase iconoclastas.

REFERÊNCIAS

1 Cf. Ion, passim: Mênon, 99 d ss.; Fedro, 244 a ss. e, sobretudo, 245 a ss.

2 Fedro, 245 a.

3 República, X, 598 b.

4 República, X, 602 a-b.

5 República, X, 603 a-b.

6 Cf. República, livros II e X.

7 Uma análise da Ideia do belo, considerada em si e por si, foi feita por Platão no Hípias Maior, mas não se deu muita atenção a esse diálogo, julgado inautêntico. Ver, ao contrário, o que considera a nossa aluna, M. T. Liminta, no ensaio: Il problema della bellezza. Autenticità e significato dell’Ippia maggiore di Platone, Celux, Milão, 1974, a qual, entre outras coisas, explica pormenorizadamente as razões pelas quais Platão rejeitou a autonomia puramente estética do belo (e, portanto, da arte).

8 República, III, 387 b.

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